Novembro de 2019
Oceano Atlântico, em algum lugar ao Sul das Ilhas Canárias.
É uma noite sem lua, mas de céu limpo e vento forte. A escuridão é total, salvo pelo fraco brilho verde vindo do radar e as cores esmaecidas do ECDIS¹ em modo noturno - muita luz pode atrapalhar a visão do Oficial de serviço no passadiço do navio (eu, no caso) enquanto busca por outros navios, perigos fixos ou até mesmo pequenos barcos em volta. O lado bom? Ao olhar para cima assim, num ponto as escuras no meio do Oceano Atlântico, as estrelas, constelações e galáxias no céu podem ser vistas com uma força que jamais teriam em terra. Essa é uma das partes que eu amo em navegar a noite.
Seria outra noite de trabalho comum, quatro horas de vigia mantendo o monstrinho de ferro de 270 metros no rumo para a ilha de Gran Canaria - seria, se não fosse o pequeno ícone triangular que de repente apareceu na tela do ECDIS, logo seguido por outro, mais outro e mais outro… Até a parte Norte do mapa estar coalhada de triângulos em movimento, cada um representando um barco que foi detectado pelo nosso sistema AIS². Isso não era normal ou esperado ali.
Logo fui para o console e comecei a estudar as informações que o aparelho me dava sobre esses alvos misteriosos - entre elas, fui informado de que eram todos barcos a vela, com seis metros e meio de comprimento, andando em velocidades alucinantes para barquinhos desse tamanho - boa parte a mais de 10 nós (18 km/h - sim, isso é rápido para um veleiro!). Além disso, tinha os nomes de cada um, todos acompanhados da observação “Solo Sailor” - que quer dizer “Navegador Solitário”.
O “nerd” de Vela de Oceano em mim percebeu na mesma hora: estávamos cruzando com a 22ª edição da regata transatlântica Mini Transat!
Se você se perguntou “Ok, mas o que raios é isso?”, já explico: é uma competição que ocorre de dois em dois anos, em que veleirinhos do tamanho de uma van, completamente voltados para a velocidade em alto mar, tripulados por uma pessoa sozinha, saem da França para o Caribe, atravessando todo o Oceano Atlântico.
O único “pit-stop” nesse percurso imenso é, justamente, nas Ilhas Canárias, o arquipélago espanhol na costa da África onde estávamos chegando com nosso petroleiro gigante. Mais que isso, é uma regata que eu acompanhei desde criança, uma aventura que me chamou a atenção e me botou para sonhar desde a primeira vez que ouvi falar dela. Ali estavam eles, tão perto que cheguei a ver as luzes de navegação de alguns dos barcos passando, vermelhas, pelo nosso bombordo (a esquerda do navio), rumo ao meio do Oceano.
Acompanhei atentamente até o último triângulo desaparecer e fiquei pensando até o final do meu turno de serviço. Eu tinha escolhido essa profissão, de Oficial da Marinha Mercante, justamente para poder me aventurar no Mar como esses loucos da Mini Transat - entre tantos outros loucos navegadores maravilhosos que já conheci, esses foram os que mais me chamaram a atenção - mas além do sonho de criança, não havia ainda posto nada no papel, pensado nisso de maneira mais concreta. Ali estava eu, tão perto e, pensando bem, sem nenhum motivo aparente que me impedisse de começar uma maluquice dessas.
Senti um calafrio na barriga ao perceber o que eu estava pensando. Ali foi o ponto sem volta, ali no que talvez fosse o lugar mais adequado para isso, numa noite de 25 nós de vento no escuro do Mar, mais sentindo como um fato do que como uma decisão consciente: eu iria tentar fazer a Mini Transat.
Anos de planejamento, preparação, treinos, perrengues, das navegadas mais maravilhosas e insanas da minha vida me esperavam. Naquela noite eu não fazia ideia do quão intenso, trabalhoso e, por vezes, um pouco arriscado esse projeto seria; por isso hoje eu tenho a certeza de que sonhos como esse são para serem vividos, ao invés de apenas sonhados.
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